segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A lição da folha seca


Depois da caminhada, sentei pra descansar um pouco debaixo de uma árvore de braços longos e sombra generosa. Privilegiada pela oportunidade de saborear a beleza natural daquele cenário, eu queria poder estar ali inteira para simplesmente estar ali. Como já havia acontecido outras vezes, eu ouviria os pássaros com ouvido amoroso e lhes retribuiria o presente com o canto do meu sorriso enternecido. Olharia, com olhos entregues, para as flores e me encantaria, de novo, com a inteligência extraordinária da natureza, que lhe permite combinar incontáveis formas, cores e tamanhos sem o mínimo sinal de cansaço criativo. Se eu pudesse estar ali inteira, como eu queria, para simplesmente estar ali, eu sentiria a brisa suave, perfumada de verde, tocar a pele de tudo, inclusive a minha, e é provável que eu experimentasse o arrepio emocionado que a grandeza da vida às vezes me causa. Se eu pudesse estar ali inteira, como eu queria, para simplesmente estar ali, eu me sentiria parte de todas aquelas dádivas, arrebatada pela mágica de ser árvore, de ser pássaro, de ser flor, de ser brisa, também.

Acontece que eu não estava ali inteira para simplesmente estar ali. Saborear encantos é privilégio que pede a máxima presença possível da alma. A barulheira exaustiva dos meus pensamentos não me permitia entrar no território daquela beleza toda e passear, sem pressa, pelos seus caminhos luminosos. O corpo estava presente, mas a atenção não conseguia se libertar daquela areia movediça que, aos poucos, engolia a minha paz: a ávida e perturbadora necessidade de entendimento. Não havia bom senso que me afastasse alguns centímetros daquela ideia. Era como se a vida estivesse suspensa até eu conseguir juntar as peças todas e visualizar o quebra-cabeça complicado. Era como se entender houvesse se tornado a única prioridade do meu coração. Ele reclamava uma explicação coerente o bastante para amenizar a dor repentina. O engasgo. O embaraço da primavera bruscamente interrompida, quando os seus galhos estavam todos carregados de brotos de amor.

Para tentar encontrar uma resposta para aquilo que eu chamava de enigma, há semanas desperdiçava tempo e energia. Pensava entre uma extremidade e outra da ponte percorrida por cada dia. Inúmeras eram as vezes em que, alheia ao que se passava ao meu redor, eu me flagrava com o olhar fixado naquele ponto que somente eu podia ver. A vida me olhava, inquieta, queria que eu voltasse a fluir com ela. Eu lá, parada, querendo o tal entendimento que pudesse me libertar daquele cárcere que eu já demonstrava até manter com esmero. Se, por alguns instantes, algo conseguia me desviar daquele foco, pouco depois eu encontrava, de novo, a pergunta incansável: Por que? Para tentar encontrar algum sentido para o que houve, dei inúmeras voltas nos quarteirões da memória à procura de pistas que pudessem ter sido deixadas pelo caminho. Reconstituí cenas. Visitei, um a um, os diálogos, os silêncios, os gestos compartilhados. Considerei as hipóteses mais óbvias e as possibilidades mais absurdas. Criei as circunstâncias mais fictícias possíveis, sem economia de imaginação. Nada adiantava. Eu sempre retornava ao ponto de partida ainda mais exausta, as mãos vazias, o coração ferido.

Ainda sentada debaixo da árvore de braços longos e sombra generosa, minha tagarelice mental foi calada por uma folha seca que caiu sobre a minha perna e tocou minha atenção. Havia chegado o seu tempo de se desprender da árvore, que, sabiamente, reconheceu o momento de soltá-la. Senti naquele gesto da natureza a existência de um recado para mim: como a árvore, eu precisava encontrar sabedoria e humildade para me desapegar daquela obstinada busca de entendimento. De verdade, por mais que nos esforcemos, não conseguimos entender algumas circunstâncias. Como costuma pontuar uma amiga, é fato. E o outro, que imaginamos poder clarificar o que houve e nos ajudar a descobrir como fomos parar juntos naquele lugar, não é raro, às vezes entende ainda menos do que a gente. O único entendimento disponível, em alguns contextos, é aceitar que é impossível entender. É aceitar que é preciso desistir. É aceitar que os ponteiros da vida estão marcando a hora de soltar. É aceitar.

Entender, eu acho, nem é prioridade do coração de ninguém. As prioridades do coração são outras. Ele quer que a gente se sinta vivo. Que a gente se sinta livre. Que a gente seja feliz. Que a gente não perca a capacidade de amar, não importa quantas vezes se machuque. Embora a nossa racionalidade não admita, ele sabe que vamos entender algumas vezes e não vamos entender absolutamente nada em outras tantas. Que é assim pra todo mundo. Que, no fim das contas, isso não faz a diferença de nos dar o que o sentimento pede. Ele sabe que não precisamos gastar tanta vida com isso. Como sentiu com tanta alma Clarice Lispector, "Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento."

Enquanto caminhava no parque, no retorno para casa, reparei que existiam inúmeras outras folhas secas como aquela espalhadas pelo chão. Lembrei que muitas delas, generosamente, virariam alimento para as plantas que ainda estavam pra nascer. E sorri.

(Texto da doce Ana Jácomo)
www.anajacomo.blogspot.com
~ Margarida ~

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